De acordo com Friedrich Müller, consagrado jurista alemão, uma norma pode se tornar obsoleta, mesmo sem alteração em seu texto, em razão de mudanças no contexto em que se insere.
A perenidade das normas jurídicas é tema bastante controverso, o que o torna um excelente assunto para análise destas autoras! Assim, na coluna de hoje, buscaremos analisar a obsolescência ou perenidade das normas sobre dedutibilidade das despesas com pagamentos variáveis a diretores e administradores, haja vista a recente publicação do Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no REsp nº 1.746.268/SP. Ademais, e como não poderia deixar de ser, apresentaremos como o assunto tem sido julgado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Sem qualquer medo de equívoco, podemos afirmar que, de fato, o pano de fundo sobre a matéria ora sob análise é a questão da obsolescência normativa. Afinal, a alteração no contexto empresarial foi uma das principais razões que levaram a ministra Regina Helena Costa a concluir, no julgamento do REsp nº 1.746.268/SP, pela não aplicação dos “vetustos requisitos da periodicidade — mensal —, bem como da constância do numerário desembolsado — fixo — em relação à despesa com o pagamento dos honorários de administradores e conselheiros de empresas”, de forma a afastar a interpretação conferida pela Receita Federal à norma atualmente contida no artigo 368, parágrafo único, I, do Regulamento do Imposto de Renda, aprovado pelo Decreto nº 9.580/2018 (RIR/2018).
Já pedindo desculpas aos nossos leitores pela aparentemente exagerada citação legislativa, a qual se faz necessária para a boa compreensão da intrincada matéria, vamos à compreensão do citado artigo 368, p.u., I do RIR/2018.
O referido dispositivo tem por fundamento artigo 43, §1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/1943, que determina a adição ao lucro real das “retiradas não debitadas em despesas gerais ou contas subsidiárias, e as que, mesmo escrituradas nessas contas, não correspondam à remuneração mensal fixa por prestação de serviços”.
Ao interpretar tal norma — à época, refletida no artigo 243, “a”, do Regulamento do Imposto de Renda, aprovado pelo Decreto nº 58.400/1966 —, no Parecer Normativo CST nº 48/1972, a Receita Federal concluiu que a vedação à dedução das “retiradas”, que não correspondessem à remuneração mensal fixa, se aplicaria aos sócios e titulares de empresas individuais e, também, aos diretores e administradores, inclusive àqueles com vínculo empregatício.
A polêmica acerca da vedação à dedutibilidade dos pagamentos variáveis a diretores e administradores se intensificou com a publicação da Lei nº 8.383/1991, cujo artigo 74 prevê a dedutibilidade da remuneração indireta — os chamados “fringe benefits” — paga a administradores e diretores, bem como com a isenção da distribuição de lucros a partir de 1996.
Diante desse contexto, a própria Receita Federal, no Parecer Normativo Cosit nº 11/1992, ao analisar a compatibilidade do então novel artigo 74 da Lei nº 8.383/1991 com o artigo do RIR/80, que, correspondia ao artigo 43, §1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/1943, concluiu que tal dispositivo se justificava, sob a égide daquela legislação então vigente, para evitar que pessoas jurídicas distribuíssem lucros sob o manto de retiradas pro-labore. Assim, a Receita Federal concluiu, no citado Parecer Normativo Cosit nº 11/1992, que com a publicação do artigo 74 da Lei nº 8.383/1991, “o conceito de mensal e fixo não deve ser mais considerado”.
Não obstante, em 1997, a Receita Federal emitiu a Instrução Normativa SRF nº 93, reafirmando expressamente que “[s]ão dedutíveis na determinação do lucro real, sem qualquer limitação, as retiradas dos sócios, diretores ou administradores, titular de empresa individual e conselheiros fiscais e consultivos, desde que escriturados em custos ou despesas operacionais e correspondam a remuneração mensal e fixa por prestação de serviços“ (grifamos).
Descritos os desencontros do tema no âmbito da legislação legal e infralegal, já podemos passar à análise da jurisprudência do nosso conselho, com uma advertência inicial: no Carf o tema é igualmente polêmico e a sua análise exige cuidados.
As gratificações e participações no resultado pagas a diretores e administradores, embora sejam uma forma de remuneração variável, têm sua dedutibilidade vedada nos artigos 45, §3º, da Lei nº 4.506/64, e 58, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 1.598/77, refletidos nos artigos 315 e 527 do RIR/18 (equivalentes aos artigos 303 e 463 do RIR/99). Assim, é preciso distinguir os casos que têm por fundamento apenas o artigo 368, parágrafo único, I, do RIR/18 (equivalente ao artigo 357, parágrafo único, I, do RIR/99) — o qual foi objeto da recente decisão proferida pelo STJ no Resp nº 1.746.268/SP, mencionada alhures —, daqueles que tratam também dos artigos 315 e 527 do RIR/18. Nestes últimos, muitas vezes, a discussão tem por foco o vínculo entre diretor ou administrador e sociedade, tendo em vista a dedutibilidade das gratificações e participações nos lucros pagas a empregados.
Debrucemo-nos, então, sobre alguns casos concretos analisados pelo Carf.
No Acórdão nº 1103-00.729, discutia-se a glosa de despesas com serviços prestados por dirigente da pessoa jurídica. Embora o fundamento da autuação não fosse art. 357, parágrafo único, I, do RIR/99, o Conselheiro Marcos Takata examinou o artigo 43, § 1º, do Decreto-lei nº 5.844/43 e concluiu que “há muito se encontra superada a restrição da dedução das despesas com administradores, dirigentes ou diretores, para remunerações mensais e fixas”. Isso porque (1) a interpretação lógica do artigo 43, § 1º, do Decreto-lei nº 5.844/43, leva à conclusão de que a restrição contida na alínea “b” se refere apenas à remuneração de sócios ou titular de firma individual; e (2) a restrição contida no artigo 43, § 1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/43 foi superada pelos artigos 47, §§ 5º e 7º e 51, da Lei 4.506/64.
O primeiro ponto trazido pelo conselheiro decorreria, basicamente, do fato de a alínea “b” do § 1º do artigo 43 do Decreto-lei nº 5.844/43 adotar o termo “retiradas”; e da alínea “d” vedar a dedução de remuneração não fixa (“percentagens”) paga apenas a diretores residentes no exterior. Em outras palavras: para o conselheiro Marcos Takata, ao utilizar a expressão “retiradas”, o legislador restringiu a aplicação da alínea “b” aos sócios ou titular das firmas individuais. Para membros de diretoria, somente os pagamentos efetuados a residentes no exterior seriam indedutíveis, nos termos da alínea “d”.
Por sua vez, a superação da restrição contida no artigo 43, § 1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/43, derivaria da nova regulação à dedutibilidade das despesas de remuneração de sócios, administradores, diretores e dirigentes, pelos artigos 47, §§ 5º e 7º e 51, da Lei 4.506/64 (posteriormente, tratada nos artigos 29 e 30, do Decreto-lei nº 2.341/87, os quais, por sua vez, foram revogados pelo artigo 88, XIII, da Lei nº 9.430/96). Este segundo ponto seria complementado pelo artigo 74 da Lei 8.383/91, que, como visto acima, autoriza a dedutibilidade da remuneração indireta paga a administradores e diretores (“fringe benefits”), que, por sua natureza, são variáveis e podem não ser mensais.
Já a autuação fiscal discutida no Acórdão nº 1402-002.266 teve por fundamento, dentre outros, os artigos 303; 357, parágrafo único, I; e 463 do RIR/99. No entanto, por se tratar de pagamentos a título de PLR a administradores, o relator baseou sua decisão nos artigos 303 e 463 do RIR/99, ressaltando, expressamente, a irrelevância do argumento do contribuinte de que o artigo 357, parágrafo único, do RIR/99, havia sido tacitamente revogado, tendo em vista a suficiência dos demais dispositivos para o deslinde do feito.
No Acórdão nº 1301-003.359, discutiu-se a indedutibilidade de bônus pago a diretores estatutários com base nos artigos 303 e 357 do RIR/99. Em seu voto, seguido à unanimidade pelos demais, o conselheiro relator invocou o Parecer rmativo CST nº 48/72, para afirmar que “o bônus recebido pelos diretores, independente da denominação que se dê a ele, não se caracteriza como remuneração mensal, fixa, e sim como gratificação anual, baseado em cumprimento de metas”. Ao final, conclui pela indedutibilidade dos pagamentos realizados, com fundamento apenas no artigo 303 do RIR/18. Adotando essa mesma lógica de base, foi proferido o Acórdão 140200.266, em 3 de setembro de 2010.
Por sua vez, no Acórdão nº 1301-003.897 analisou-se a omissão contida no julgamento anterior acerca da dedutibilidade dos valores pagos aos administradores a título de remuneração. Em seu voto, o conselheiro relator, ao examinar o artigo 357 do RIR/99, afirmou que a limitação da dedutibilidade aos valores mensais e fixos “se destina a impedir que quantias exorbitantes e pagas de forma esporádica sejam deduzidas do lucro real a título de remuneração de administradores não empregados. Sem requisitos que exijam um mínimo de uniformidade nos pagamentos, a norma seria dotada de tamanha elasticidade que comportaria qualquer coisa, de modo que tudo caberia no conceito de remuneração, sendo, por conseguinte, dedutível”.
Por fim, no Acórdão nº 9101-004.773, a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) tratou da dedutibilidade das gratificações e participações nos lucros pagas a diretores, que, segundo o contribuinte, seriam “diretores-empregados”. De acordo com o voto vencedor, a dedutibilidade das despesas dependeria da qualificação dos diretores: se fossem considerados “diretores-empregados”, as despesas seriam dedutíveis de acordo com os artigos 299, § 3º, 359 e 462, III, do RIR/99 e com o artigo 3º, § 1º da Lei nº 10.101/2000; se fossem enquadrados como administradores, a vedação à dedutibilidade decorria dos artigos 303; 357, parágrafo único; e 463 do RIR/99. Com base nessas premissas, como a análise do caso concreto levou à conclusão do colegiado de que o vínculo entre empresa e diretores não era celetista, mas estatutário, foi mantida a autuação, com base, inclusive, no artigo 357, parágrafo único, do RIR/99.
Disso vemos os diferentes contextos em que aparece, no Carf, a discussão sobre a relevância da periodicidade e da variabilidade dos montantes pagos a diretores e administradores, para fins de dedução do IRPJ.
Lembrando que o alcance da aplicação dos precedentes pelo Carf deve basear-se na compreensão do papel preponderante que os tribunais Superiores têm na ordem jurídica brasileira — o de Corte Suprema ou de Vértice, cujos julgados orientam a própria corte e as demais instâncias jurisdicionais —, é preciso agora dar ênfase ao quanto decidido pelo STJ no REsp nº 1.746.268/SP.
Nesse precedente inaugural sobre a matéria, deixando mais uma vez clara a questão da obsolescência da legislação federal, o voto condutor parte da lição de Ricardo Mariz de Oliveira quando diz:
“Mas todas as disposições que ainda subsistem para restringir a dedutibilidade de custos ou despesas carregam esse vesgo de anacronismo e injuridicidade. São anacrônicas porque as primeiras disposições legais impeditivas de deduções datam de épocas antigas, nas quais o cenário empresarial era totalmente diferente do atual — época das empresas de famílias e dos dirigentes integrantes dessas famílias —, sendo que atualmente mesmo as empresas familiares se agigantaram e em geral estão sob gerência profissional, enquanto as menores enveredam pelo lucro presumido ou mesmo pelo regime do Simples, no qual em nada importam os custos e as despesas existentes ou não. São anacrônicas, também, porque, havendo desde 1996 isenção na distribuição de lucro, não é em todo caso que interessa disfarçar um lucro efetivo em outro tipo de custo ou despesa que, para o receptor, passa a ser renda tributável”.
Por essas razões, a maioria dos ministros da 1ª Turma do STJ concluiu que, na apuração do IRPJ, pela sistemática do lucro real, a vedação de dedutibilidade de pagamentos a administradores e conselheiros, que não correspondam a valor mensal e fixo, “vulnera, induvidosamente, as normas plasmadas nos arts. 43 e 44, ambos do CTN, dispositivos esses interpretados à luz do conceito constitucional de renda“.
Diante desse cenário, apesar de a decisão proferida no Resp nº 1.746.268/SP não vincular formalmente a Receita Federal ou os Conselheiros do Carf , é possível que o entendimento do STJ, com relação à obsolescência do artigo 43, §1º, “b”, do Decreto-lei nº 5.844/1943, traga novos contornos às discussões que envolvam a dedutibilidade dos pagamentos variáveis a diretores e administradores.
FONTE: Revista Consultor Jurídico, 19 de outubro de 2022